Papa Francisco e a irmã água
Amedeo Lomonaco, Silvonei José – Vatican News
Um bem fundamental, um direito, uma condição para o exercício de outros direitos humanos. Não uma mera mercadoria, mas uma forma de fraternidade em um mundo sedento de justiça. O Papa Francisco, durante seu Pontificado, disse repetidamente que a água é um recurso fundamental que requer “uma consciência universal”, e não uma “mentalidade utilitarista”. Ela deve ser fonte de vida, não causa de morte.
Água, reconstrução e reconciliação
Após os dramas e feridas de uma guerra, o acesso à água é uma das prioridades a partir das quais se pode recomeçar para construir um futuro de paz. Durante sua viagem apostólica ao Iraque, recordando a violência e os conflitos que abalaram o país do Golfo, o Papa Francisco, em 5 de março último, agradeceu aos Estados e organizações internacionais que estão trabalhando “pela reconstrução e pela assistência aos refugiados, aos deslocados internos e àqueles que estão lutando para voltar para suas casas”. Um compromisso profuso, acrescentou o Santo Padre, “tornando disponíveis no país alimento, água, moradia, serviços de saúde e higiênicos, bem como programas destinados à reconciliação e à construção da paz”.
O compromisso da Santa Sé por uma ecologia integral
A atual pandemia e a mudança climática exigem medidas que não podem mais ser adiadas. Em sua mensagem em vídeo em 13 de dezembro de 2020, por ocasião da Cúpula Virtual de Alto Nível sobre Ambição Climática, o Papa Francisco lembrou que a Santa Sé une este objetivo em dois níveis. “Por um lado”, salientou o Santo Padre, “o Estado da Cidade do Vaticano está empenhado em reduzir a zero as emissões de gás antes de 2050, intensificando os esforços de gestão ambiental, já em curso há alguns anos, que possibilitam o uso racional dos recursos naturais como água e energia, eficiência energética, mobilidade sustentável, reflorestamento e a economia circular também na gestão de resíduos. “Por outro lado, a Santa Sé está empenhada em promover a educação para a ecologia integral”.
Olhando para as periferias
Há bairros em muitas cidades habitados por um povo de excluídos. O Papa recordou isto em sua mensagem em vídeo dirigida em dezembro de 2020 aos participantes do XXIII Dia da pastoral social. “Vemos certas periferias”. Vemos – salientou o Pontífice – as crianças sem escola, as pessoas que têm fome, as pessoas que não têm assistência médica, o imenso número de pessoas que não têm água corrente, as pessoas que não têm acesso ao mínimo para viver com dignidade”.
Pandemia e acesso à água
“A pandemia da Covid ampliou e evidenciou ainda mais os problemas e as injustiças socioeconômicas que já estavam afligindo seriamente toda a América Latina, e com maior dureza os pobres”. O Papa enfatizou isto em sua mensagem em vídeo, lançada em 19 de novembro de 2020 e dirigida aos participantes do seminário virtual “América Latina”. A Igreja, o Papa Francisco e os cenários da pandemia”. “Nem todos”, recordou o Santo Padre, “têm os recursos necessários para adotar as medidas elementares de proteção contra a Covid-19: um teto seguro onde possam atuar o distanciamento social, água e produtos sanitários para higienizar e desinfetar seus ambientes, um trabalho seguro que garanta o acesso aos benefícios, apenas para citar os mais essenciais”. Recordando a atual situação de emergência sanitária, Francisco fez uma pergunta particular: todos têm acesso à água?
Um bem “vital para a vida
A água é um bem comum a ser salvaguardado. O Papa Francisco reiterou isto no Angelus de 8 de novembro de 2020, lembrando um dia especial. “Celebramos hoje na Itália” – disse ele naquela ocasião -, “o Dia de Ação de Graças, sobre o tema ‘Água, bênção da terra'”. A água é vital para a agricultura, é também vital para a vida! Estou próximo em oração e afeto ao mundo rural, especialmente aos pequenos agricultores. O trabalho deles é mais importante do que nunca neste tempo de crise. Eu me junto aos Bispos italianos que nos exortam a salvaguardar a água como um bem comum, cujo uso deve respeitar seu destino universal”.
Um direito humano universal
Água e alimentação. Esta relação é um dos temas centrais da mensagem em vídeo de Francisco em outubro passado aos participantes do “Countdown”, o evento digital de Ted sobre mudança climática. “O acesso à água potável e segura”, lembrou o Papa, “é um direito humano essencial e universal”. “É indispensável, pois determina a sobrevivência das pessoas e por isso é condição para o exercício de todos os outros direitos e responsabilidades”. “Garantir uma alimentação adequada para todos através de métodos de agricultura não destrutivos deve tornar-se o objetivo fundamental de todo o ciclo de produção e distribuição de alimentos”.
Consciência universal
O cuidado com a casa comum não pode ser separado da moral. Na Encíclica “Fratelli tutti “, publicada em 4 de outubro de 2020, o Papa se refere à água para reiterar uma prioridade: a de “reconhecer os direitos de todo ser humano”. Quando falamos em cuidar da casa comum que é o planeta”, escreve Francisco, “apelamos para esse mínimo de consciência universal e preocupação com o cuidado recíproco que ainda pode permanecer nas pessoas”. Na verdade, se alguém possui excesso de água, e ainda assim a conserva com a humanidade em mente, é porque atingiu um nível moral que lhe permite ir além de si mesmo e de seu próprio grupo ao qual pertence. Isto é maravilhosamente humano! Esta mesma atitude é a que necessitamos para reconhecer os direitos de cada ser humano, mesmo que ele tenha nascido além das próprias fronteiras”.
A água não seja uma mera mercadoria
A água é um bem essencial para o equilíbrio dos ecossistemas e para a sobrevivência humana. É necessário administrá-la e cuidar dela para que não seja contaminada ou perdida. Foi isto que o Papa enfatizou em sua mensagem para o Dia Mundial da Água de 2019. O documento também indica uma prioridade: “é preciso elaborar planos de financiamento, assim como projetos hídricos de grande escala”. “Esta firmeza levará à superação da ideia de transformar a água em uma mera mercadoria, regulada exclusivamente pelas leis do mercado”.
A água e as nossas origens
“A água nos convida a refletir sobre nossas origens. O corpo humano é composto pela maior parte de água; e muitas civilizações, na história, surgiram na proximidade de grandes cursos d’água que marcaram sua identidade”. O Pontífice lembrou isto em 2018 em sua mensagem para o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, acrescentando que a água é um “elemento tão simples e precioso, que infelizmente poder ter acesso é difícil, se não impossível para muitos”. “Cuidar das fontes e reservatórios de água é um imperativo urgente”. É necessário superar uma mentalidade utilitarista porque “projetos compartilhados e gestos concretos são urgentemente necessários, tendo em mente que qualquer privatização do bem natural da água em detrimento do direito humano de acesso a ela é inaceitável”.
Fonte de vida
“A Igreja invoca a ação do Espírito sobre a água “para que aqueles que nela recebem o batismo sejam sepultados com Cristo na morte e com Ele ressuscitem para a vida imortal”. Em sua audiência geral, em 2 de maio de 2018, detendo-se sobre o Batismo, o Papa disse que “a água é uma matriz de vida e bem-estar”. Sua falta, porém, “causa a extinção de toda a fecundidade, como acontece no deserto; a água, porém, também pode ser a causa de morte, quando submerge em suas ondas ou em grande quantidade atinge todas as coisas; finalmente, a água tem a capacidade de lavar, limpar e purificar”. “A água do Dilúvio”, lembrou o Papa, “marcou o fim do pecado e o início de uma nova vida (cf. Gen 7,6-8,22); através da água do Mar Vermelho os filhos de Abraão foram libertados da escravidão no Egito (cf. Ex 14,15-31). Em relação a Jesus, recordamos seu batismo no Jordão (cf. Mt 3,13-17), o sangue e a água derramados do seu lado (cf. Jo 19,31-37), e o mandato aos discípulos de batizar todos os povos em nome da Trindade (cf. Mt 28,19). Fortalecidos por esta memória, pede-se a Deus que infunda na água da fonte a graça de Cristo que morreu e ressuscitou (cf. Rito do Batismo das crianças, n. 60). E assim, esta água é transformada em água que traz dentro de si o poder do Espírito Santo”.
Direito à água uma condição para o exercício de outros direitos
“O direito à água é determinante para a sobrevivência das pessoas (cf. Enc. Laudato si’, 30) e decide o futuro da humanidade”. “É também uma prioridade educar as próximas gerações sobre a seriedade desta realidade”. Esta é uma das passagens centrais do discurso em 2017 do Papa Francisco aos participantes do IV Workshop organizado pela Pontifícia Academia de Ciências intitulado “O Direito Humano à àgua”. O respeito pela água”, disse o Papa, “é uma condição para o exercício de outros direitos humanos”. Se respeitarmos este direito como fundamental, estaremos lançando as bases para proteger os outros direitos”.
Água e Laudato si”
A palavra “água”, na encíclica “Laudato si'” assinada em 24 de maio de 2015 pelo Papa Francisco, aparece nada menos do que 39 vezes. E um capítulo inteiro, o segundo, é dedicado ao problema deste recurso indispensável. “Água potável e limpa”, diz o texto, “é uma questão de primordial importância, pois é indispensável para a vida humana e para a sustentação dos ecossistemas terrestres e aquáticos”. “Em alguns países existem regiões com abundância de água, enquanto outros sofrem graves carências”. “Enquanto a qualidade da água disponível piora constantemente, em alguns lugares há uma tendência crescente para privatizar este recurso escasso, transformado em uma mercadoria sujeita às leis do mercado. Na realidade, o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e é, portanto, uma condição para o exercício de outros direitos humanos”. “Este mundo tem uma séria dívida social para com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto significa negar-lhes o direito à vida enraizado em sua inalienável dignidade”.
Dia Mundial da Água, o Papa: um dom, não uma mercadoria
Cecilia Seppia – Vatican News
“Para nós crentes, a ‘irmã água’ não é uma mercadoria: é um símbolo universal e uma fonte de vida e saúde. Demasiados irmãos e irmãs têm acesso a pouca água e talvez água poluída! A água potável e o saneamento devem ser garantidos para todos. Agradeço e encorajo todos aqueles que, com diferentes habilidades profissionais e responsabilidades, trabalham em prol deste objetivo muito importante. Penso, por exemplo, na Universidade da Água, na minha pátria, naqueles que trabalham para levá-la adiante e para fazer as pessoas entenderem a importância da água. Muito obrigado a vocês, argentinos que trabalham nesta Universidade da Água”: foi o que disse o Papa Francisco, depois do Angelus, recordando que hoje, segunda-feira, é o Dia Mundial da Água.
Mais de 2 bilhões de pessoas sem acesso à água potável
O grito por água é um grito que se propaga através da imprensa, da mídia, corre na web, invade redes sociais, ilumina de azul monumentos, na ausência de iniciativas e eventos públicos, proibidos por causa da pandemia da Covid-19. E é um grito que todos, governos em primeiro lugar, têm o dever de ouvir, como nunca se cansa de repetir o Santo Padre. A água, no centro do Dia Mundial, estabelecido pelas Nações Unidas em 1992, este ano intitulado “Valuing Water”, ainda está faltando em muitas, demasiadas áreas do mundo penalizando os mais pobres. Na verdade, há mais de 2,2 bilhões de pessoas que não têm acesso à água potável e 4,2 bilhões que não têm saneamento seguro. Além disso, enquanto o uso da água aumentou seis vezes no século passado e agora cresce a uma taxa de cerca de 1% ao ano, estima-se que a mudança climática e a crescente frequência de eventos extremos, tais como tempestades, enchentes e secas, piorem a situação em países que já sofrem de “estresse hídrico”.
A iniciativa do Dicastério do Vaticano
Para marcar este aniversário, o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral organizou uma série de diálogos públicos de 22 a 26 de março: cinco webinars com um propósito informativo e animados pelo desejo de promover a colaboração interdisciplinar. Palestrantes de congregações religiosas, várias estruturas da Igreja e organizações internacionais ou regionais compartilharão suas reflexões e testemunhos sobre os temas de “Aqua fons vitae”, documento publicado no ano passado pelo próprio Dicastério, que tem suas raízes nos ensinamentos sociais dos Papas e se baseia no trabalho de missionários e membros da Igreja em contextos difíceis, bem como em relatórios técnicos das Nações Unidas, da Ocse e da sociedade civil.
Diálogo e ação
Em particular, “Acqua fons vitae” descreve três aspectos da água que servirão como ponto de partida para os webinars desta semana: primeiro, a água como um recurso para uso pessoal, um direito que inclui o saneamento básico; depois a água como um recurso utilizado em muitas atividades humanas, especialmente na agricultura e na indústria; e finalmente a água como superfície, ou seja, rios, águas subterrâneas, lagos, e especialmente mares e oceanos. A parte introdutória do documento também apela ao reconhecimento dos múltiplos valores da água: o religioso, sociocultural e estético, o valor institucional e de paz e, finalmente, um valor econômico. “O que é necessário é uma determinação, uma vontade por parte dos Estados para alcançar este objetivo o mais rápido possível, para garantir que o acesso à água e ao saneamento, em seguida, permita o acesso a outros direitos”, diz Tebaldo Vinciguerra, responsável pelas questões de água no Dicastério, ao Vaticano News, reiterando como o caminho do diálogo e da colaboração entre a Igreja e as instituições é fundamental não apenas para aumentar a conscientização sobre o assunto, mas para realizar projetos e obras em benefício da população.
R. – A água, um bem primário, não pertence a todos, é verdade! Portanto, é importante aproveitar este dia que as Nações Unidas decidiram celebrar este ano usando o slogan “O valor da água”. E eu lhes asseguro que aqueles que não têm água para cozinhar, para a higiene pessoal, mas também para serem tratados adequadamente no hospital, entendem muito bem o valor da água. Mais de 2 bilhões de pessoas hoje têm algum tipo de problema com o acesso regular, a quantidade e qualidade adequadas de água potável, e mais ou menos 4 bilhões de pessoas têm um problema com saneamento, de acordo com os números das Nações Unidas; mais de 600 milhões de pessoas defecam ao ar livre. Temos uma visão talvez muito agradável, excessivamente idílica do trabalho realizado por religiosas, missionários, centros de saúde, escolas católicas em áreas particularmente pobres e desfavorecidas. Essas pessoas fazem um trabalho excepcional, devem ser admiradas e ajudadas, mas não subestimemos o fato de que mesmo ali, onde a Igreja está na linha de frente, há sérios problemas relacionados com água, higiene, serviços, dos quais ninguém fala. Aproveitemos, portanto, este dia para destacar um elemento que é muito ignorado, pelo menos por parte da humanidade, porque o acesso à água, este bem comum que é tão precioso, não deve ser dado como certo, não deve ser dado como garantido.